O Caso do Hotel Reis Magos: o que é patrimônio histórico no Brasil?
Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares
Todos acompanhamos a novela do Hotel Reis Magos que se encerrou recentemente com o soterramento da memória moderna da cidade sobre escombros e poeira. Contudo, não nos surpreendeu, aqui no blog, o descaso estatal com a história potiguar, mas foi chocante a defesa apaixonada que muitos potiguares fizeram da derrubada do prédio. É preciso entender esse movimento e tivemos que nos lançar nos livros.
Primeiro era preciso entender o que é patrimônio histórico e porque as pessoas negavam-se a ver o hotel como histórico, apesar das afirmações categóricas de historiadores e arquitetos. A definição científica de patrimônio histórico é aquilo que uma cidade ou comunidade ou mesmo um pequeno grupo da cidade se relaciona através da memória (em que pessoas lembram de terem acontecido coisas), através de relações sentimentais (em que alguém foi, por exemplo, pedido em casamento) ou como monumento (para relembrar um evento importante da história, onde fulano viveu ou morreu, por exemplo). A situação aqui era clara: a maior parte da população natalense não sabia nada disso. Eles não achavam que a evocação de memórias e sentimentos da população que vive no bairro (que foi quem mais se levantou em sua defesa) era o bastante para que ele fosse considerado histórico. Ele fazia parte da história daquelas pessoas. Porém, para os natalenses, se ele não fosse um monumento, se algo importante não tivesse acontecido ali, não valia a pena preservá-lo. Alguns bem intencionados até tentaram associar o hotel a Pelé, que teria se hospedado ali, para garantir aquele espaço algum tipo de notoriedade histórica.
E o mais interessante é que essas mesmas pessoas argumentavam que no lugar de preservar o hotel, deveria-se lutar pela conservação do Forte dos Reis Magos e da Ribeira. Que esse patrimônio que era digno de ser considerado histórico! Que isso era verdadeiramente histórico! Aí ficamos pensando sobre os mesmos parâmetros: memória, sentimentos e monumento. Por que o Forte e a Ribeira, o que é considerado colonial, evoca essa memória histórica e o que é moderno, como o Hotel Reis Magos, o Alecrim e o Petrópolis não tem o mesmo apelo? Por que se exige que algo importante tenha acontecido no Hotel Reis Magos, mas os armazéns da Ribeira, que só guardaram produtos para serem vendidos, merecem ser preservados? O problema ganha um outro nível! Muito mais complexo!
A pergunta que deve ser feita aqui é: o que é histórico? Por que o público natalense considera histórico somente o que é colonial? Para responder isso temos que voltar no tempo, até 1950, quando os modernistas estavam na moda (me perdoem o trocadilho!). Quando JK resolveu construir Brasília e elegeu o modernismo para sua nova capital, arquitetos como Oscar Niemeyer e Lúcio Costa tornaram-se definidores do que era bonito. Hoje diríamos que eles eram lançadores de tendência. E uma das tendências que eles lançaram foi que o colonial era histórico e o resto podia ser derrubado.
Pensem comigo: cidades como São Paulo e Rio de Janeiro estavam lotadas de prédios dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, mas ali no século XX queriam ser modernas. E os modernistas se viram nessa posição delicada, porque eles acreditavam que o passado deveria ser preservado, sobretudo para garantir um sentimento de nacionalidade e de ligação com o espaço. Uma “arquitetura nacional” deveria ser mantida para que tivéssemos um passado a lembrar. Mas qual arquitetura seria essa? O ecletismo FRANCÊS do século XIX era a arquitetura BRASILEIRA? O neoclássico ROMANO do século XVIII seria? O Barroco IBÉRICO do século XVII? Ou o colonial PORTUGUÊS do século XVI? Venceu o século XVI. E acredito que isso se deu porque todos os exemplares estão no Brasil, sabe? Portugal teve um imenso terremoto, ainda no século XVIII, que destruiu toda a arquitetura colonial.
Então os modernistas inventaram que o patrimônio histórico era apenas o colonial (e pipocaram centros históricos nas cidades que existiam desde a colônia) e que não tinha problema derrubar o resto para trazer o progresso. E por isso preservar um hotel moderno não faria sentido, porém derrubar o Forte dos Reis Magos é impensável. Hoje! Hoje se pensa assim, porque havia um outro forte, em Ponta Negra, e esse foi derrubado sem o menor peso na consciência porque eram outros tempos.
E mais um problema surge aí (como dissemos a questão é complexa): para o leigo em História, no entanto, o colonial cresceu e abraçou o Barroco, o Neoclássico e também o Eclético, que os modernistas detestavam, e como uma vingança irônica, passou a odiar o Moderno. O século XX não é história porque ele não é moderno. A defesa da Ribeira é incontestável, mas as casas Art Nouveau e Art Decó do Alecrim não recebem a mesma proteção. E o modernismo, apesar de exaltarmos Niemeyer convocando-o para erigir monumentos inabitáveis, pode ser derrubado.
A questão que perguntamos é: por quê? Por que esse moderno não cria esse sentimento de passado que os séculos anteriores ao XX evocam? Uma explicação pode ser o jogo entre memória e esquecimento. Cinquenta anos atrás ainda é um passado que não precisa de monumento para retomá-lo, para lembrar dele. Não é um passado que ganhou o véu místico e misterioso do Lethe. É um passado que ainda está presente. Talvez isso cause uma sensação de que ele não precisa ser preservado. Ainda está ali. Tem outras tantas iguais (lembro de um comentário no Facebook de um rapaz dizendo que a casa dele era do mesmo período, se ela também merecia ser tombada, eu respondi que sim). Mas se esta história (ainda) presente não for mantida, resguardada, protegida, ela também vai desaparecer. A questão, no fim, é essa: como nós ainda nos lembramos não é História?