A Canoa Indígena da Lagoa de Extremoz: a embarcação mais antiga da América
Por Arqueólogo Moysés M. de Siqueira Neto
Em 1997, Pedro Luiz da Silva saiu para pescar como de costume na Lagoa de Extremoz, localizada no município litorâneo de mesmo nome do Rio Grande do Norte. Durante a pescaria, chamou sua atenção um objeto em madeira, com cerca de 5 metros, depositado na lama. A curiosidade não se conteve e logo chamou seu filho para retirar o objeto com a ajuda de um barco maior. Para sua surpresa, avistou algo novo: “nunca vi uma canoa dessas em minha vida.... eu acho que é indígena”, afirmou na época. O objeto identificado como “canoa indígena” ganhou fama na localidade e chegou até a ser furtada e devolvida após queixa à polícia feita pelo pescador.
A notícia da canoa, bem conhecida como canoa-de-um-pau-só ou canoa de índio, correu solta até encontrar Oscar Nascimento, assistente do Museu Câmara Cascudo da UFRN. Ele avisou sua equipe de trabalho, coordenada por Vicente Tassone. A imagem abaixo registra o momento do encontro em dezembro de 1997, acompanhando de perto pela comunidade, quando o arqueólogo ressaltou para imprensa a importância do achado que, correlacionado com cerâmicas tupinambás datadas, poderia ter com cerca 700 anos.
O Museu Câmara Cascudo ficou com a canoa doada e o pescador com uma promessa (não paga) de ganhar uma placa com seu nome. Em dezembro de 1997, o jornal Diário de Natal registrou o momento da chegada da canoa no museu e a mensagem de que Pedro Silva ficou “tranquilo com o destino dado à embarcação indígena encontrada por ele em meio à lama da Lagoa de Extremoz”.
A canoa indígena virou objeto de museu, isso que os técnicos chamam de acervo. Ao chegar, ela logo ocupou o lugar de uma jangada na exposição sobre o ambiente pesqueiro e lá ficou quase 10 anos, quando foi parte do cenário de uma casa tradicional de pescadores em ambiente caiçara (feita em taipa e coberta com palha de coqueiro, com chão areia da praia, redes de pesca, âncoras e outros instrumentos de pesca). Os visitantes puderam ver ela até 2010, quando foi guardada no Setor de Etnologia motivada para reforma no pavilhão expositivo do Museu Câmara Cascudo da UFRN.
Em 2013, ao aproveitar a baixa da Lagoa de Extremoz, o pescador Pedro Luiz da Silva encontrou mais outra canoa (além da que já havia sido encontrada anteriormente e entregue ao Museu Câmara Cascudo). Dessa vez, os pesquisadores Carlos Rios e Marcelo Lins saíram de Pernambuco (da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE) até a Lagoa de Extremoz na busca por respostas para suas perguntas. Eles indicaram que eram artefatos náuticos, conhecidas como canoas monóxilas por serem construídas em um bloco único de madeira. Os pesquisadores analisaram e coletaram amostras para datação através da famosa técnica de datação por Carbono 14.
Os resultados encontrados pelos pesquisadores da UFPE através da datação em laboratório de grande confiabilidade dos Estados Unidos foi impressionante: a primeira canoa encontrada por Pedro Silva foi chamada de Extremoz 04 e tinha cerca de 700 anos (fabricada entre os anos de 1290-1320 e 1350-1385 d.C., ou seja, dois séculos antes da chegada dos colonizadores, durante o período de formação de Portugal). Com isso, até o momento, a datação da canoa monóxila Extremoz 04 indicou que se trata do artefato náutico mais antigo já descoberto no Brasil e, suas características indicam que foi usada no transporte de pequeno número de pessoas e carga em locais de águas calmas.
A partir das informações coletadas com as outras 3 canoas, Extremoz 01 (1645-1665 DC), Extremoz 02 (1665-1685 e 1730-1805 DC), Extremoz 03 (1640-1665 DC), e outras mais recentes em Pernambuco, também com auxílio de fontes iconográficas (imagens antigas), como o quadro de Frans Post, no qual retrata o Forte Reis Magos no período do domínio holandês no Brasil (1630-1654), dentre outras, os pesquisadores indicaram que, com a base monóxila (um tronco apenas), a canoa nativa foi capaz de se transformar a partir de novas tecnologias e usos adaptadas ao tronco único escavado até os dias atuais.
Não há dúvidas que a canoa datada mais antiga do Brasil tem muitas histórias ainda para serem contadas. Ao sair do fundo da lagoa de Extremoz, ela ‘renasceu’ para um novo universo de ações e significações museológicas - ligadas à memória e o papel da cultura/tecnologia indígena local e nacional. No encontro com o pescador Pedro Luiz da Silva foi chamada de canoa indígena e levada ao ambiente pesqueiro do Museu Câmara Cascudo. Com os pesquisadores Rios e Medeiros foi denominada de canoa monóxila e revelou ser base da cultura canoeira modificada com a intrusão de aspectos ocidentais diversos. Como será o encontro dela com os grupos Tapuia, Tapuia Paiacu e Potiguara? Com a grande população urbana que, mesmo atualmente não se auto-identificando indígena, tem origem genética e cultura de referência nativa?
Na nova fase de sua existência, a canoa deixou sua função utilitária de transportar um número pequeno de pessoas pelas águas calmas da Lagoa de Extremoz. Pelo olhar da arqueologia, em conjunto com as outras canoas encontradas na Lagoa de Extremoz, atravessou as duas margens do tempo artificial da história brasileira: a pré-colonial e pós-colonial. Ela é um passado distante e, ao mesmo tempo, bem presente. É parte da cultura indígena e, simultaneamente, base para uma nova - formada no encontro com a ocidental.
Em silêncio, a canoa indígena, ou Extremoz 04, esperou 700 anos para ser testemunha material de que não existe pré-história no Brasil. Nossa história é muito anterior a chegada documentada e da própria documentação dos europeus. A canoa ao longo da história registrou em sua materialidade, então, o projeto de destruição cultural (etnicídios) e suas resistências com a criação de culturas híbridas (etnogêneses). A história, apesar das mudanças acentuadas no período, é a experiência acumulada de uma míriade de povos nativos que se transformou com elementos culturais vindos à bordo das náus ocidentais.
A canoa indígena espera de nova exposição ou mostra, estudos, livros, poesias e filmes. Claro, com o devido respeito pela complexidade que a cultura e memória indígena impõem. Para além das percepções interpretativas e retóricas sobre a canoa, perguntar o que ela deseja vir-a-ser em 2020. Um convite para falar, pois, ela se encontra mais viva do que nunca no mundo contemporâneo, levando seus novos passageiros pelas águas do tempo.
AGRADECIMENTOS:
Prof. Carlos Rios (UFPE), Gildo Santos (MCC/UFRN), Marcelo Lins e Jaílma Medeiros (MCC/UFRN).
Para Saber Mais:
Marcelo Lins e Carlos Rios. Canoas monólixas da Lagoa de Extremoz/RN, Brasil.
Marcelo Lins. Arqueologia marítica: a evolução da canoa monólixa em Pernambuco.