Auta de Souza - Lugar de Mulher é na Literatura
Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares
“Não vês? Minh’alma é como a pena branca
Que o vento amigo da poeira arrancaE vai com ela assim, de ramo em ramo,
Para um ninho gentil de gaturamo...
Leva-me, ó coração, como esta pena,
De dor em dor, até a paz serena.”
Auta Henriqueta de Souza foi uma poetisa romântica, nascida em Macaíba, em 1876. Filha de Eloy Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina Rodrigues, era irmã de Eloy de Souza e Henrique Castriciano, políticos potiguares, e Irineu e João Câncio.. Morreu muito jovem, aos 24 anos apenas, vítima de uma tuberculose. . Nas memórias do irmão, Eloy, temos: “Durante muito tempo residimos em Macaíba, numa casa que ficou na tradição da cidade como a “Casa do Porto”, por ser fronteira do desembarcadouro do rio Jundiaí. Aí, nasceram Henrique e Irineu. Auta e João Câncio nasceram em 1876 e 1877, na casa nova da rua do Comércio, construída por Mestre Timóteo, a quem muito nos afeiçoamos”.
De família negra, todos eles nasceram ainda durante a vigência da escravidão (a abolição é de 1888). Não sabemos como Eloy conseguiu a própria liberdade, porém, quando ele está instalado em Macaíba, abriu, com o futuro sogro, Francisco de Paula Rodrigues, a firma Paula, Eloy e Cia que financiava safras agrícolas. Eles trabalhavam com mandioca, açúcar, mas principalmente algodão. Com uma grande fortuna, e a proteção de Francisco Rodrigues, foi mais fácil para o Eloy de Souza se integrar a elite local potiguar. E integrar seus filhos. Porém Maria Lucia de Barros Mott, em seu trabalho Escritoras Negras: resgatando nossa história, salienta que, para Auta de Souza, aconteceu um silenciamento das suas origens negras por parte dos escritores que se debruçaram sobre sua vida e escreveram textos tanto de cunho laudatório quanto de ordem biográfica. Diz ela que eles temiam comprometer sua importância se este dado fosse exposto.
Tornou-se orfã aos 3 anos, perdendo os pais para a doença que a mataria. A mãe morreu aos 27 anos, o pai, aos 38. Ela foi criada então, no Recife, pela avó materna, Silvina Maria da Conceição de Paula Rodrigues. Foi na cidade pernambucana que fez as primeiras letras no Colégio São Vicente de Paula, educada por freiras, aprendeu francês, inglês, latim, música e desenho. Aos doze perdeu o irmão, Irineu, que morreu na explosão de um candeeiro. E aos catorze recebeu o diagnóstico: tinha tuberculose também.
Como era tratamento comum a época, era preciso leva-la para um local com ar mais puro e ela deixou Recife para voltar a Macaíba. Abandonando a escola, mas mantendo-se ativa com os livros que seus irmãos lhe traziam. Ela também começou a escrever e publicou pela primeira vez, em 1893, aos dezessete anos, suas primeiras poesias na revista natalense Oásis; aos vinte anos publicava nos jornais potiguares A República, Oito de Setembro e A Tribuna, A Gazetinha de Recife, como também n’O Paiz, do Rio de Janeiro. Assinava, no entanto, as poesias como Ida Salúcio e Hilário das Neves. Sob um nome masculino, Auta passou a viver e sustentar-se a partir da literatura. Ela passou a assinar somente seus poemas após publicar, entre 1897 e 1898, na revista A Mensageira, uma publicação paulista direcionada somente ao público feminino.
Seus poemas, no entanto, adotam características ainda mais românticas quando ela conhece João Leopoldo da Silva Loureiro, que chegara a Macaíba para trabalhar como promotor público em 1895. Ela se apaixona profundamente pelo advogado, porém sua doença se agrava e ela tem que ser internada. Afastada dele, ela soube um ano depois que ele falecera também de tuberculose. Toda essa dor é canalizada diretamente para seu primeiro livro, Horto, publicado em 1900, com prefácio escrito pelo poeta Olavo Bilac.
Horto foi um dos primeiros best sellers da literatura brasileira. Sua tiragem esgotou-se em dois meses apenas.
À alma de minha mãePartiu-se o fio branco e delicado
Dos sonhos de minh’alma desditosa...
E as contas do rosário assim quebrado
Caíram como folhas de uma rosa.
Debalde eu as procuro lacrimosa,
Estas doces relíquias do Passado,
Para guardá-las na urna perfumosa,
Do meu seio no cofre imaculado.
Aí! se eu ao menos uma só pudesse
D’estas contas achar que me fizesse
Lembrar um mundo de alegrias doidas...
Feliz seria... Mas minh’alma atenta
Em vão procura uma continha benta:
Quando partiste m’as levaste todas!
[Natal, Março de 1895].
Ao Luar
(A Maria Fausta e a Mercês Coelho)
Astros celestes, docemente louros,
Giram no espaço, em luminoso bando;
Ouve-se ao longe um violão plangente
E, mais além, n’um soluçar dolente,
Canções serenas, ao luar voando.
Quanta tristeza pela noite clara!
Quanta saudade pelo azul boiando!
Cuida-se ouvir, n’um dolorido choro,
As preces tristes de um magoado coro
De almas penadas ao luar rezando.
O céu parece uma igrejinha antigaQue a lua branca vai alumiando...
E essas estrelas, muito além dispersas,
São rosas brancas no Infinito imersas,
Monjas benditas, ao luar chorando.
Os pirilampos, pelas moitas tristes,
Voam, calados e sutis, brilhando...
Lembram descrenças, a bailar sombrias,
Ilusões mortas de esquecidos dias,
Almas de loucos, ao luar passando.
Flocos de nuvens pela Esfera adejam,
Barcos de neve pelo Azul formando...
Semelham preces que se vão da terra,
Almas mimosas, que este mundo encerra,
De criancinhas, ao luar sonhando.
Eles parecem também velas brancasSoltas, à toa pelo mar vogando...
Leves e tênues, a correr imensas,
Folhas de lírios pelo Ar suspensas,
Aves saudosas, ao luar chorando.
Ai! quem me dera ser também criança!Ai! quem me dera andar também voando!
Fazer dos astros um barquinho amado,
N’ele vagar por todo o Céu dourado,
As minhas dores ao luar cantando!
[Angicos - Junho de 1896]
Bohemias
(A Rosa Monteiro)
Quando me vires chorar,
Que sou infeliz não creias;
Eu choro porque no Mar
Nem sempre cantam sereias.
Choro porque, no Infinito,As estrelas luminosas
Choram o orvalho bendito,
Que faz desabrochar as rosas.
Do lábio o consolo santoÉ o riso que vem cantando...
O riso do olhar é o pranto:
Meus olhos riem chorando.
O seio branco da auroraDerrama orvalhos a flux...
O círio que brilha chora:
A dor também fere a luz?
Teus olhos cheios de ardoresAninham rosas nas faces...
Que seria dessas flores,
Responde, se não chorasses?
Sou moça e bem sabes queA moça não tem martírios;
Se chora sempre, é porque
Pretende imitar os lírios.
Enquanto eu viver no mundo,Meus olhos hão de chorar...
Ah! como é doce o profundo
Soluço eterno do Mar!
Do lábio o consolo santoÉ o riso que vem cantando...
O riso do olhar é o pranto:
Meus olhos riem chorando.
[Jardim de Angicos, Agosto de 1897]
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