Os Piratas do Alto do Portinho
Todos nós aprendemos na escola que quando os portugueses chegaram, oficialmente, ao Brasil em 1500 eles estabeleceram um monopólio de exploração das riquezas das terras brasileiras, não é? Para isso eles utilizaram o Tratado de Tordesilhas, que determinava a demarcação de um meridiano a 370 léguas da ilha de Santo Antão, a ilha mais a oeste do arquipélago de Cabo Verde. A partir deste meridiano, a oeste, seria terra exclusivamente espanhola, e a leste, terra exclusivamente portuguesa. O tratado foi ratificado em Castela (Espanha) em 2 de junho e, em Portugal, em 5 de setembro de 1494. Seis anos antes do descobrimento do Brasil, o que confirma a tese de que os portugueses já conheciam as terras brasileiras e que a expedição de Pedro Álvares Cabral só teria vindo tomar posse do que eles já consideravam seu.
Obviamente, esta divisão, sancionada pelo papa Júlio II, em 1506, não agradou as outras coroas europeias. Francisco I, rei da França, disse: "Eu gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que me exclui da partilha do mundo”. Os reis, principalmente, da Inglaterra, França e Holanda estimularam os corsos/corsários, em que um navegador recebia autorização real para saquear, roubar e contrabandear produtos nos territórios das coroas ibéricas; a pirataria, que difere do corso porque ele age individualmente, sem trabalhar sob o escudo de nenhuma casa real; e o contrabando, como forma de agir contra o tratado que os excluía.
Neste cenário, o Rio Grande do Norte tornou-se um importante posto de corsários e contrabando, sobretudo francês. Antes mesmo da chegada dos portugueses, mesmo antes da expedição de 1536 do donatário João de Barros (vamos contar essa história também esse mês viu?), nós temos uma presença constante de navegadores franceses no Rio Grande. Provas dessa presença foram encontradas na escavação arqueológica realizada à época da construção da ponte Newton Navarro, em 1999, coordenada pelos arqueólogos Walner Spencer e Cláudia Borges. Localizou-se um sítio denominado Alto do Portinho, à margem norte do Rio Potengi, na desembocadura do Rio Doce (que antes era totalmente navegável até a Lagoa de Extremoz), com fácil acesso ao antigo aldeamento de São Miguel do Guajiru e do vale do Ceará-Mirim. O bairro natalense da Ribeira localiza-se exatamente do outro lado do rio, também através dele é possível alcançar o porto de Guarapes e subindo o Jundiaí, alcançar a antiga Coité (hoje Macaíba). Ou seja, um ponto extremamente importante para controlar o comércio em toda a região.
Contudo o sítio foi extremamente alterado pela ação humana (no local se retirava areia para construção e também era usado por carvoeiros para fazer carvão), e com isso os vestígios mais antigos, com certeza, se perderam, ou foram movidos de local atrapalhando sua datação. Apesar disso ainda foi possível encontrar restos de construções que remontam ao século XVI. Tijolos de argila, com marcas de dedos dos oleiros, fragmentos de telhas e pesadas dobradiças de portas como também os batentes, em pedra, sendo estas, provavelmente, construções anteriores ao Forte dos Reis Magos. Do século XVII foram encontradas louças, piteiras e cachimbos. O que é mais interessante é que quase nenhuma cerâmica utilitária, isto é, usada para preparar alimentos foi encontrada, apesar do grande número de ossos animais. Isto indica que o sítio não era habitado como casa, mas que os seus usuários apenas aportavam ali por algum tempo e partiam.
Por isso os arqueólogos acreditam que este sítio funcionava como um porto ou entreposto comercial e que, mesmo após a fundação da cidade de Natal, ele continuou sendo utilizado, não obstante a historiografia afirmar que a ação do governador do Brasil, Cristovão Valjaques, desde 1526, teria acabado com a pirataria. Esse entreposto era ponto de recarga dos navios franceses com as preciosas cargas de pau-brasil e eles funcionavam sempre mantendo boas relações com as tribos indígenas. Tanto que quando os portugueses chegam ao Rio Grande, pela primeira vez em 1536 e depois em 1598, os potiguaras já os consideravam inimigos dado sua relação de amizade com os franceses. Navegadores como Jean Angot e Thomas Aubert devem ter frequentado o Alto do Portinho, já que em 1509, índios potiguaras são levados por navios de Angot para a França como curiosidades do novo mundo.
Como o contínuo uso do Alto do Portinho atesta, mesmo com a fundação de Natal e de seu forte na boca da barra do rio, o contato francês com os índios não foi extinto. A noite, aproveitando as sombras, os navios adentravam o Potengi e aportavam no rio Doce, sendo carregados rapidamente em meio as árvores do mangue. Era preciso, no entanto, acompanhar o ritmo das marés. O ancoradouro aqui só é acessível na maré alta e era preciso ser rápido ou o navio ficaria encalhado até o retorno das águas. Era, sem dúvida, uma atividade perigosa!
No século XIX, o Portinho continuou funcionando ativamente. Agora com contrabandistas portugueses e ingleses, que se aproveitando da posição estratégica para acessar os engenhos de Ceará-Mirim e Macaíba e os portos da Ribeira e de Guarapes, além da aldeia de Guajiru (Extremoz) abasteciam um empório que vendia, sem pagar os devidos impostos a coroa, produtos sofisticados que a aristocracia potiguar desejava como jogos de cama de linho, chá, vinho e perfumes, e louça decorada. Os arqueólogos encontraram até mesmo pilhas de dedais de costura para venda.
Para Saber Mais:
Héctor Tanzi. O Tratado de Tordesilhas e a sua projeção.
Michel Mollat. As primeiras relações entre a França e o Brasil: dos Verrazani a Villegainon.
Walner Barros Spencer e Cláudia Cristina do Lago Borges, Projeto Arqueológico Ponte de Natal: Relatório Final.