Alecrim: O Lazareto da Piedade
Por Profª. Dra. Juliana Rocha de Azevedo da Costa
Ventos de mudança sopraram sobre as terras potiguares. Eram ventos que traziam doenças, insalubres, perniciosos e anunciadores de medo, dor e sofrimento. Muitos viram morrerem entes a quem mais prezavam, era o reinado das doenças infectocontagiosas que tiranicamente ceifaram milhares de vidas potiguares. As doenças ameaçadoras aterrorizavam os habitantes e o governo. No século XIX, chegava a Natal, conforme a cidade crescia, a lepra, a sífilis, a cólera e a varíola, conhecida vulgarmente como bexiga. Esta última vinha assolando a província desde pelo menos 1835 como denuncia o Relatório do Presidente de Província, como eram chamados os governadores à época, Antônio Bernardo de Passos. A cidade que aos poucos crescia, inevitavelmente tinha que enfrentar graves crises, doenças, mortes, miséria e orfandade.
A miséria contribuía com a desgraça de muitos. O campo não oferecia mais as benesses para uma vida digna. Migrar para a capital, nos tempos de seca, muitas vezes, era o único caminho (em 1877, inclusive, tivemos uma grande seca que empurrou muitos migrantes para as cidades do litoral). A indigência tornou-se companheira inseparável de muitos. As ruas tornaram-se lares e o céu o amparo. Muitos eram negros, escravos libertos, caboclos que passaram a fazer parte da paisagem dos passeios públicos. Que solução se daria a toda essa gente?
Muito se discutiu sobre o assunto, por isso as metas de construção de uma Casa de Caridade, um Hospital, um Lazareto e um Isolamento estavam sempre em pauta. Entretanto só em 1855 foi criado o primeiro hospital de nossa cidade, o Hospital da Caridade (na Antiga Casa do Estudante, no Largo da Junqueira). Mas precisava- se de algo mais, um local definido para envio dos mais execráveis casos insalubres e para as quarentenas dos suspeitos que viajavam a navio por este litoral. Daí então, dois anos depois do Hospital, foi criado um lazareto ainda sem denominação específica, num local muito distante, além do Cemitério, localizado na Estrada Velha de Guarapes, (atual Rua Fonseca e Silva, onde funciona o Centro de Saúde do Alecrim e a Legião Brasileira de Boa Vontade).
Ao chefe de polícia fora dada a incumbência da limpeza das ruas, remoção dos focos, isto é, cabia a polícia recolher os doentes das ruas e levar para o Lazareto. Aos indigentes que perambulavam pelas ruas sem o destino de um lar sem a chance do asseio íntimo, com a fome como companheira, cabia-lhes uma sina definida pela lei, o encaminhamento àquele lugar, denominado em 1882 de Lazareto da Piedade de Natal. Em sua função o Lazareto, estranhamente não recebia leprosos, como seria normal, mas outros casos. Recebia a parcela de doentes sem perspectiva de cura ou os que ficaram com sequelas devido a varíola e outros males como a tuberculose e sífilis. Ali também eram despejadas as pessoas que não se enquadravam nas regras de conduta social, os quais eram chamados de loucos. Na Europa, como explica o historiador Michel Foucault, em seu História da Loucura, já havia ocorrido algo semelhante, no período posterior a epidemia de lepra, os lazaretos foram destituídos de sua função com os leprosos e passaram a receber toda a parcela da escória humana da sociedade europeia. Embora no Rio Grande do Norte ainda existissem leprosos, a eles foi destinada, anos mais tarde, uma outra forma de segregação, o Leprosário. A ideia de Lazareto era de dar hospitalidade, mesmo que precária a uma população que não oferecia o mesmo perigo que a lepra, mas que dependia de caridade. Os leprosos já desenganados pela ciência não teriam um lugar assim. Eles representavam perigo constante e seu destino era ser banido para muito além do convívio social.
Do final do século XIX ao início do século XX, a situação se agravou. Natal passou por um relevante crescimento demográfico intensificado pelo êxodo rural gerado pela crescente miséria no campo, essas pessoas foram chamadas de Rebanho Magro, como registra Câmara Cascudo, em História da Cidade do Natal. O único Hospital da Cidade fechou em 1910, passando, o Lazareto a receber sua clientela carente e afetada pelas piores enfermidades, entre elas a tuberculose e a sífilis. O silêncio do despovoado Alecrim aos poucos foi dando lugar a estranhos sons, gritos angustiados e desesperados. Eram as vozes de homens, mulheres e até crianças encerrados entre espessas paredes e grossas grades de ferro do Lazareto. Em poucos anos aquele lugar daria uma só denominação a seus habitantes, os loucos.
Será que a fome, a pobreza e a mendicância ganhavam uma nova denominação? Surgia o personagem do louco na história de nossa cidade, novo foco de preocupações do governo e da comunidade. E sob esta alcunha eram colocados todos os execráveis, todos aqueles indivíduos que não se queriam conviver dentro da sociedade, que os bons cidadãos não podia voltar seus olhos, eram mandados para aquele lugar distante.
Em todo Brasil, as pessoas consideradas loucas (sob estes parâmetros), mesmo isentas de crimes previstos no código penal, conheceram as cadeias públicas. Diz Douglas Sucar, no seu Nas Origens da Psiquiatria Social no Brasil, que ficavam presos em celas ou amarrados em cordas, em ambientes imundos, na grande maioria das vezes deitados no chão, sem muitas vezes ter um cobertor, passavam fome e não raro eram espancados até a morte. As pessoas enviadas para o Lazareto encerravam seus destinos ali. Raramente retornavam daquele lugar. Eram despojados de suas vestes e amontoados uns aos outros: homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, nus. Alguns papéis são a únicas provas de suas existências. Fichas de entrada, documentação burocrática exigida na instituição, comprobatória ao governo do trabalho prestado à sociedade – isolar e tratar esses “doentes”.
Mas não haviam “loucos” de verdade nestes ambientes? As casas de misericórdia foram os primeiros locais a receber pessoas que precisavam de tratamento psiquiátrico no Brasil, os chamados de alienados, bem antes da instalação dos primeiros hospícios, mas não atendiam a total demanda deles. As famílias mais abastardas, escondiam em suas próprias casas seus doentes, em quartos próprios ou construções anexas especialmente levantadas, já os pobres perambulavam pelas ruas sem abrigo.
Natal, demorou para possuir um local assim um hospital para seus alienados. Somente no século XX a assistência ao doente mental, no Brasil, foi reconhecida como dever do Estado. O primeiro decreto foi promulgado em 1903, no governo de Rodrigues Alves, inspirado na lei francesa de 1838 de Esquirol. Nele era estimulada a construção de hospitais estaduais especializados, e proibia-se a manutenção dos alienados em prisões, ao mesmo tempo em que era enfatizada a necessidade do tratamento médico. A lei buscava a efetiva medicalização dos hospícios, objetivo perseguido pelos alienistas (como se chamava os psiquiatras) desde 1880. Porém, o que vemos de fato acontecendo são as instituições estatais de saúde tornando-se agências políticas de contenção e controle, repetindo métodos e crenças preconceituosas sobre compreensão e o tratamento para a loucura.
Ainda no ano de 1911, o Lazareto da Piedade do Natal passa a ser chamado oficialmente Asilo da Piedade do Natal, e na boca do povo Prisão dos Doidos. A segunda denominação era a expressão da realidade, demonstrando como as práticas estavam bem distantes do que as leis já exigiam. Aquele lugar aprisionava qualquer indivíduo que não se enquadrasse nos padrões impostos pela sociedade.
Somente em 1916 as coisas mudaram. O Asilo da Piedade ganhava a atenção de seu primeiro médico, o Doutor Varella Santiago e, quando, em 1921, no governo de Antônio José de Melo, passa a chamar-se Hospício de Alienados de Natal. Nele foi definida uma regulamentação que uniformizava os serviços e quem deveria ser aceito dentro de seus muros!
O prédio já antigo, fora construído no plano térreo com sua entrada central e seus janelões laterais. Uma mureta separava a calçada do espaço interno e no cume da fachada uma escultura em mármore observava e advertia aos visitantes da importância da caridade. Trata-se de uma alegoria a caridade: uma mulher oferecendo leite e pão às crianças que estão a seus pés.
Por ocasião da construção do Hospital Colônia de Psicopatas, em 1950, posteriormente conhecido como Hospital Colônia João Machado, um raio de esperança se projetava frente aqueles pacientes. Imagino o dia da transferência e último fechamento daqueles portões. Certamente nenhum olhar para trás, mas sim para a frente, para a Av. Alexandrino de Alencar. E aquele que foi Lazareto, Asilo e Hospital, encerrou suas atividades.
Para saber mais:
Douglas Dogol Sucar. Nas origens da Psiquiatria Social no Brasil: um corte através da História do Rio Grande do Norte.
Falas dos Governadores do Rio Grande do Norte.
Luís da Câmara Cascudo. História da cidade do Natal.