Genealogia dos Bairros: Passo da Pátria
Por Prof. Irandir Gomes de Almeida e Prof. Dr. Lenin Campos Soares
O Passo da Pátria, maior comunidade ribeirinha da nossa capital, vista por muitos como a zona marginal da região, está localizado entre o conjunto de casas a partir do qual se desenvolveu o bairro da Cidade Alta e o bairro do Alecrim, às margens do Rio Potengi e da linha férrea. A região já foi um dos bairros da cidade, atualmente ela foi absorvida pela Cidade Alta, e é considerada uma das regiões problemáticas da cidade, com falta de saneamento, uma marginalidade crescente e níveis de pobreza que se destacam (segundo uma pesquisa da SEMTAS, de 2003, 55,8% dos moradores não possuem nenhuma renda). Hoje, na geografia da capital, ela é reconhecida por um complexo de favelas (Passo da Pátria, Areado e Pantanal), que se formaram sobretudo a partir da década de 1970 (como resultado do boom econômico, resultado da Ditadura Militar).
De acordo com Jeanne Nesi, as primeiras menções feitas à então Rua Passo da Pátria datam de 23 de setembro de 1772, quando o Senado da Câmara do Natal outorga terras naquele espaço. Oito anos mais tarde, segundo Câmara Cascudo, a senhora Maria das Neves inicia uma construção na “estrada que sobre do porto buscando a igreja de Santo Antônio da parte do Norte.”, um território bem íngreme por sinal. Em 1780, ele é conhecido por Porto do Oitizeiro, deste nasceu um cais chamado de Porto do Rio Salgado ou Porto da Cidade, na foz do riacho do Baldo, que conectava a Cidade Alta ao rio Potengi, tendo grande crescimento no século XIX. O cais servia como entreposto para as mercadorias que desciam de Macaíba e passavam pelo porto do Guarapes, e alimentava uma feira que vendia os produtos que chegavam à cidade. O mais interessante é que esta feira funcionava à noite, iluminada a luz de lamparinas.
Existem registros de tentativas públicas de melhoramento do cais desde 1805, porém é por volta de 1847 que temos o primeiro plano urbanístico, o Plano Hidro-topográfico do rio Potengy, que batiza a rua que dá acesso ao porto de Caminho Novo do Dr. Sarmento, antiga Ladeira da Cadeia (por começar do lado da Casa de Câmara e Cadeia), que se chama hoje Rua João da Mata. Em 1856 a região recebe novos melhoramentos graças ao presidente de província, Bernardo de Passos, e o morador da região, um preto vendedor de panelas chamado Manoel Bofe, que investindo suas horas de descanso cortou o matagal que envolvia a estrada e terraplanou a ladeira, deixando-a menos íngreme. Em 1866, a ladeira já está calçada, o que demonstra a sua importância para a vida na cidade. Uma nova via também é aberta neste ano, que passava ao lado do Hospital de Caridade (atual Casa do Estudante), esta que se chamará Rua Passo da Pátria.
As primeiras casas da região são desta época, de depois da atuação de Manoel Bofe, e o nome do povoado também chega depois. Passo da Pátria tem esse nome por causa da Guerra do Paraguai. Foi batizado assim pelo presidente de província Olinto José Meira, em 1866, em homenagem aos voluntários norte-riograndenses que lutaram na guerra. Junto com o novo nome, o cais também é reconstruído e, com ele, sua Praça de Alfândega.
Em 1878, há o registro de ampliações do bairro com a construção de aterros sobre as margens do rio Potengi. O porto havia sido construído no que era chamado de Aterro do Salgado, mas agora a região conhecida por Passagem do Salgado, que fazia parte do bairro da Ribeira, fora anexada ao Passo da Pátria. Em 1881, temos o início da construção da ferrovia, que inicialmente vai conectar Natal a Nova Cruz, e um segundo trecho, em 1904, que vai conectar a capital a São José do Mipibu e Ceará-Mirim. Controlada pela empresa inglesa, The Great Western of Brazil Railway Company, esta ampliou sua rede sucessivamente até 1939, quando passou o controle para a Estrada de Ferro Sampaio Correia. Uma estação foi construída no Passo, demonstrando novamente sua importância social.
A primeira feira de Natal.
“À sua direita, ficava um grande galpão de alvenaria, e à esquerda, algumas bodegas. Atrás, a linha da estrada de ferro. Formava, assim um quadrado, ocupado no centro por uma grande feira”, é assim que descreve Jeanne Nesi.
Além do porto, é importante falar que a primeira feira livre de Natal foi no Passo da Pátria, como já dissemos aqui. Grande parte do abastecimento da cidade passou a se dar a partir dos produtos que chegavam àquele porto e eram comercializados na feira, desde material de construção, até quitutes, frutas, verduras, legumes e animais. Grande era a variedade de produtos que ali eram comercializados. Eram vendidos utensílios ou enfeites domésticos, artesanato em barro, brinquedos infantis, pães, farináceos, até bebidas alcoólicas e pólvora se encontrava lá.
Temos também a descrição da feira feita pelo poeta Jaime Wanderley: “Espalhados pelos quadrantes do pátio, estavam botequins, barracas de caldo de cana, bancas de jogos de jaburu, jogos de dados, bacará, situados num flanco, pois o outro era destinado aos tabuleiros com gostosas tapiocas de coco, alfenins, com figuras de animais e flores, sequilhos de goma, broas, doces secos, pés-de-moleque, biscoitos de araruta, cuscuz, além de grandes mesas servindo café com bolachas secas e grudes de Extremoz e de outras tantas, destinadas à venda de sarapatel apimentado, com cachaça, que eram apregoados em altas vozes pelos comerciantes, para atraírem a freguesia”.
Como dissemos, ela funcionava a noite, diariamente, e aos sábados começava a funcionar desde a tarde. Ela se tornou rapidamente o principal centro de diversão dos jovens da cidade durante quase um século. Ali, além dos produtos recém-chegados a cidade, vindos do sertão, os natalenses encontravam bares e cabarés, onde podia-se ouvir samba, e onde as jovens migrantes se prostituíam. Atraindo tanto os populares, quanto os filhos das boas famílias.
Diz o poeta Jaime Wanderley: “o populacho fazia da feira (...) o prazer favorito das noites de sábado, quando o pátio daquele logradouro regurgitava de gente de todas as camadas sociais, que se confundia na alegria nervosa daquelas horas, que eram vividas sem preocupações, como um passatempo. Já às 6 horas da tarde, começavam a descer a íngreme ladeira, pavimentada com empedramento irregular, moçoilas, matronas, cavalheiros, soldados, cabeceiros, comerciantes, funcionários públicos, mundanas, pescadores, uma verdadeira miscelânea humana”.
E essa será a grande preocupação que leremos nos jornais como A República e O Caixeiro. A região é costumeiramente descrita negativamente, seus caminhos são ásperos, suas ladeiras são tão convidativas quanto uma escalada nos Alpes; tudo isso para demover da cabeça dos bem-nascidos jovens da capital de passear por aquela região, ouvindo e dançando música de pretos e se relacionando com aquelas meninas promíscuas. Lauro Pinto descreve assim: “Ali a condição humana atingiu o máximo em infelicidade e degradação. Tanto assim que o maior desaforo e a ofensa mais ferina era o de chamar a qualquer meretriz, mesmo sendo de baixa classe, de puta do Passo da Pátria”.
A feira, no entanto, continuou funcionando até 1940, porém a partir de 1920 quando temos a construção do Mercado da Cidade Alta, que transferiu para o bairro os comerciantes, e a linha férrea tornou mais barato transportar os produtos por trem do que usando o porto, se inicia uma decadência para a região comprimida entre o rio e a linha férrea.
Com o fim de sua feira, uma visão preconceituosa começa a se formar sobre a região. Januário Cicco diz, por exemplo, que aquele bairro operário tem “habitações úmidas, baixas, sob cujo teto vivem prosmiscuamente e em excesso seus moradores”. E isso faz com que muitas pessoas abandonem a região durante o início do século XX – permanecendo apenas um grupo de moradores ao redor da região da Pedra do Rosário, que se estabelece ali por volta de 1910, sendo a região, até a década de 1950, um imenso terreno vazio.
É com o crescimento urbano pós-Segunda Guerra que ocorre em Natal que a primeira favela começa a se fixar (inclusive, no Passo, tivemos um dos galpões do projeto De Pé No Chão Também Se Aprende a Ler, instituído pelo prefeito Djalma Maranhão, que aplicava o método Paulo Freire de alfabetização). Na década de 1970, são as comunidades de Areado e Pantanal que começam a ser levantadas. Em 1980, o crescimento já é acelerado, e a região é toda ocupada.
O bairro que não é mais bairro
O primeiro projeto de reurbanização foi iniciado em 2002, sob o governo de Wilma de Faria, que permanece inconcluso, caracterizou a área como uma AEIS (Área Especial de Interesse Social) e como um complexo favelar, com três comunidades, porém no estudo de Daline de Souza, ela informa que os moradores locais reconhecem quatro pedaços: Pedra do Rosário, Passo, Areado e Pantanal, em que cada um comporta regras de reconhecimento, lealdade e sociabilidade distintos. No Pedra do Rosário, por exemplo, os moradores são considerados mais antigos, e a região é vista como mais valorizada, especialmente porque a festa da padroeira da cidade ocorre naquela região (foi no ancoradouro da Pedra do Rosário que foi encontrada a imagem da padroeira de Natal). Enquanto Areado e Pantanal já são vistas pelos moradores como favelas de verdade, por causa das habitações mais precárias, e onde o ambiente é violento e inseguro.
Para Saber Mais:
Jeanne Nesi. Caminhos de Natal.
Jeanne Nesi. #CaminhosdeNatal: Rua Passo da Pátria, do porto e da feira.