Folclore Potiguar: Bestas e Monstros

Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares

No dia 22 de agosto, comemora-se o Dia do Folclore, a data lembra a criação da palavra por Wiliam Thoms, em 1846. Segundo Luís da Câmara Cascudo, o maior folclorista brasileiro, folclore é a cultura popular, tornada normativa pela tradição. São conhecimentos, crenças e costumes valorizados especialmente por causa da relação emocional que as pessoas tem com aquelas práticas. Contudo, o folclore nunca está congelado no passado, como muitos pensam, ele se atualiza sempre, porém os novos elementos que são integrados a esse conhecimento popular são revestidos de uma falsa aparência de tradicionalismo para serem aceitos. Ele também abandona motivos, hábitos e padrões que perderam seu significado, que se esvaziaram de sua finalidade. O folclore é vivo e está em constante transformação.

Por isso, no início do século XX, alguns historiadores e antropólogos se voltaram para o registro das tradições folclóricas. Especialmente influenciados pela Semana de Arte Moderna de 1922 e o Antropofagismo, que pregava uma valorização da cultura nacional (e nesse mote se incluía o folclore). Mário de Andrade, em São Paulo; Ademar Vidal, na Paraíba, Pereira da Costa, em Pernambuco; e vários outros elencaram as tradições folclóricas brasileiras. Mas o maior pesquisador nessa área, no Brasil, foi o potiguar Luís da Câmara Cascudo, que em seus inúmeros livros devassou as tradições alimentares e artísticas, além dos mitos e tabus religiosos. Cascudo tornou-se uma fonte riquíssima para entender o pensamento da povo brasileiro até a década de 1950 (quando a introdução da TV altera substancialmente as tradições folclóricas).

Parte I: Bestas e Monstros

Nesta primeira parte apresentaremos alguns dos animais mitológicos que fazem parte da tradição folclórica potiguar.

Anta Esfolada

Nos fins do século XVIII, a região banhada pelo rio Curimataú era povoada por fazendas de gado. Contudo a carne não era para a alimentação dos caboclos, era a caça e a pesca que completava a alimentação. Entre outras peças de caça, a anta era comum na região. Diz Cascudo que um caçador preferia sempre a anta a qualquer outro animal porque além da carne, o couro era sólido e resistente para fazer alpercartas ou bruacas (bolsas colocadas no lombo de animais).

Registra Cascudo:

“Surgira uma anta fantástica, assombrando os moradores. Corria como um relâmpago, desnorteando os caçadores (…). Rodeava as casas, roncando alto. Diziam-na encantada. Um caçador apanhou-a numa armadilha. Matou-a a pau ou, segundo outros, para quebrar o encanto decidiu esfolá-la viva. Aos primeiros golpes de quicé [faca pequena e sem ponta], o tapir arrancou-se das mãos de seu algoz, deixando a pele, e sumiu-se em desabalada carreira.

Daí em diante, anos e anos, a Anta Esfolada aparecia em todos os recantos, roncando, pulando, circulando as fazendas, alastrando um pavor sobrenatural. (…) Ninguém ousava abandonar a segurança da casa depois do Sol posto. O próprio demônio era o guia do animal estranho, veloz e louco, que passava pelos caminhos, sem pele, como uma nódoa vermelha de sangue.

Anos e anos a Anta Esfolada reinou naquelas paragens, deixando rasto de estórias e medos. Certos de tratar-se de proesa diabólica, os habitantes promoveram a vinda de um missionário para exorcizar a espantosa besta. Veio um missionário capuchinho. A tradição diz ter sido Frei Serafim da Catania, catequista famoso e de prestigiosa memória popular (…).

Escolhendo uma encruzilhada, o padre leu em voz alta as tremendas apóstrofes do Rituale onde se fere o combate entre Jesus Cristo e o obstinado Satanaz. Depois aspergiu água benta nos lugares escolhidos pela Anta e sempre visitados. Depois mandou erguer uma grande cruz, de inharé, na estrada favorita do fantástico tapir e benzeu-a. Depois declarou que a terra estava conquistada pela Cruz contra Belzebu.” (CASCUDO, Geografia dos mitos brasileiros).

Surgiu então o topônimo, Anta Esfolada, que em 1868 se tornou a Vila de Nova Cruz, por causa da cruz construída para expulsar a Anta.

Batatão e o Fogo Corredor

O Batatão é a corruptela de uma palavra indígena, Mboytatá, a cobra-de-fogo, que perseguia os homens que tentava incendiar a floresta. É um mito compartilhado com boa parte do Nordeste, apesar do nome mudar em alguns estados. Na tradição cristã, eles se tornaram o espírito de homens e mulheres que não guardaram o respeito pela Igreja, vivendo em matrimônio sem terem sido abençoados por um padre, e agora eram obrigados a penar até que seja cumprida a sua sentença. A grande diferença potiguar é que o Batatão seria um fogo parado, que não persegue as pessoas, e que ele seria a alma de homens; enquanto o Fogo Corredor, que perseguia as pessoas que encontrava, correndo atrás delas, seria o espírito de mulheres.

Cobras da Lagoa de Extremoz

Nos fins do século XVI, criou-se o aldeamento de São Miguel do Guajiru, em 1760, ele se tornou a primeira vila do estado, contudo em 1855, mudou-se a cede do município para a povoação de Boca da Mata, que ganhou o título de vila e o novo nome de Ceará-Mirim. Com a mudança, Extremoz ficou abandonada, esquecida, e reduziu-se a uma aldeia, que se povoou de assombrações. Conta-se:

“No tempo dos frades, a lagoa era povoada por duas cobras enormes. Uma, muito feroz e atrevida, devorava os banhistas e quem atravessasse a lagoa se devia pegar com S. Miguel para que a cobra não viesse agarrá-lo. Especialmente as crianças eram as vítimas preferidas pela fome inextinguível do ofídio. A outra cobra era mansa. Limitava-se a assobiar tristemente nas tardes em que seu companheiro nadava perseguindo os incautos.

Que cobras eram estas? Foram duas crianças pagãs que os indígenas jogaram dentro da lagoa, a conselho dos pajés, para que os padres não as batizassem. Viraram cobras e estavam cumprindo penitência.

Num domingo, depois da missa, um padre missionário veio até a margem da lagoa e falou em nome de Deus, todo poderoso. Intimou-as a comparecer na igreja, naquela tarde, às horas da benção do Santíssimo Sacramento. A cobra fêmea, tardinha, saiu da lagoa, arrastou-se, repelente e viscosa, ára a vila, espavorindo quem a avistava. Atravessou a praça e enrolou todo o edifício da igreja com seu imenso corpo reluzente, juntando a cabeça e a cauda na soleira da porta principal. Do altar-mor, paramentado, o Vigário admoestou-a à santa obediência e, erguendo a mão, abençoou-a. A cobra desenroscou-se, voltou, coleante e terrível, para as águas da lagoa. Nunca mais saiu nem fez mal. Vez por outra vêm seu dorso negro, sobrenadando.

O companheiro, desobediente, não veio à igreja. O padre amaldiçoou-o da porta do templo, em voz alta e em latim. A cobra excomungada nadou para o outro lado da lagoa, esgueirou-se pelo mato, ansiada e bufando como uma locomotiva, derrubando arbustos com o açoite furioso da cauda poderosa. No sítio estirou-se e morreu. Nesse local nunca mais cresceu capim e a estreita faixa de areia no meio da vegetação reproduz fielmente o contorno da serpente fantástica” (CASCUDO, Geografia dos mitos brasileiros).

Haja Pau

“Desde 1926, e não antes, apareceu no município de Canguaretama, (…) compreendendo todo o vale do Catu, uma voz errante e fantástica, pronunciando distintamente: - Pau! Haja pau! De maneira clara e de assombrosa precisão. Não se distingue da voz humana, de animal ou ave; apenas a voz atravessa o espaço, espalhando o pavor, gritando a fase excitação: - Pau! Haja pau! Dizendo as sílabas de maneira prolongada e assustadora. Há vinte anos que os moradores (…) tem tentado descobrir a origem do grito misterioso. (…) Ouvindo o Haja Pau algumas pessoas tem caído desmaiadas, ouvindo a frase típica, inconfundível, descendo sobre elas como um raio, sem que fosse possível ver o corpo ou perceber de onde vem a voz sinistra”. (CASCUDO, Dicionário do folclore brasileiro).

Labatut

É um monstro com forma humana, antrópofago, cujo mito é comum nas fronteiras entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, no Chapadão do Apodi. Ele era o pior dos monstros. Morava no fim do mundo, e todas as noites percorria as cidades esfomeado, em busca de uma pessoa distraída para ser seu jantar. Ele preferia, no entanto, alimentar-se de crianças que teriam a carne mais tenra que a de adultos. Ele caçava na Lua Nova, percorrendo ligeiro as ruas das cidades, parando às portas para ouvir quem cantava ou assobiava. Esses que ele escolhia devorar. Era descrito como uma criatura de pés redondos, mãos cumpridas e cabelos longos e assanhados, seu corpo também era coberto de pêlos, sempre eriçados, como um porco-espinho. Só tem um olho na testa e as presas são como as de elefantes.

Lobisomen

O lobisomen é um mito que existe em várias regiões brasileiras, cada uma delas com sua especificidade. Ele consiste em um homem com a capacidade se tornar lobo ou cachorro, no Rio Grande do Norte, ele se transforma num cachorro grande, do tamanho de um bezerro, e escuro. Como homem, é pálido, sempre com aparência doentia, não consegue nunca engordar. Acredita-se que as pessoas nascem lobisomens, ou castigo por terem nascido de um incesto, ou porque foram predestinadas. Também pode ser um filho que nasceu após uma série de sete filhas. Aos treze anos, numa terça ou quinta-feira (aqui não existe nenhuma relação com a Lua Cheia), sai de noite, e topando com um lugar onde alguém fez um juramento, começa seu sofrimento.

“Daí por diante, todas as terças e sextas-feiras, de meia-noite às duas horas, o lobisomem tem que fazer a sua corrida, visitando sete cemitérios de igreja, sete vilas acasteladas, sete partidas do mundo, sete outeiros, sete encruzilhadas, até regressar aos mesmo local onde se transformou pela primeira vez, onde readquire a forma humana. (…). Quem ferir o lobisomem, quebra-lhe a maldição; mas que não se suje de sangue, de outro modo herdará a triste sina” (CASCUDO, Dicionário do folclore brasileiro).

Para feri-lo, não é preciso bala de prata, mas de uma bala que se unte com a cera de uma vela que ardeu por três missas de domingo ou na Missa do Galo, na noite de Natal.

Zumbi de Cavalo

Na várzea do Assu, no lugar que tenha morrido um cavalo não passa ninguém à meia-noite, porque se passar aparece o zumbi (a alma) do bicho, que vai crescendo, crescendo, até matar o indivíduo. É importante lembrar que a palavra zumbi só ganhou esse sentido que tem hoje, graças ao cinema americano entre a década de 1940 e 1980, até essa fase era um sinônimo de fantasma. Ele cresce em estatura até matar de pavor quem o perturba. Um cavalo em especial tem nome: Cavalo do Engenheiro. Conta-se:

“O engenheiro Gates veio dirigir, em 1915, a rodovia que liga Assu a Macau. Andava sempre em um cavalo esplêndido. O cavalo morreu e o dono mandou-o enterrar, gesto desconhecido na região. A sepultura do cavalo ficou ao pé de um umarizeiro (…). Daí em diante o cavalo reaparece, assutando os viajantes, fazendo fugir um dos homens reputadamente bravos” (CASCUDO, Geografia dos mitos brasileiros).