Felipe Camarão, o governador geral dos índios do Brasil
Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares
O índio potiguar Potiguaçu, ou Camarão Grande, nasceu em 1580, em uma aldeia na margem norte do rio Potengi, chamada Velha Igapó, segundo Tavares de Lyra, não obstante seu berço de nascimento ser disputado por outros estados, como o Ceará, Paraíba e Pernambuco. Tinha 19 anos quando os portugueses chegaram e fundaram a cidade do Natal, na margem oposta que os índios habitavam. Aquela época, os índios, amigos dos franceses, eram inimigos dos portugueses e atacaram muitas vezes os acampamentos brancos causando severos prejuízos e mortes, liderados pelo pai de Potiguaçu. Porém, os jesuítas organizaram rapidamente uma embaixada de paz que, em 1604, ofereceu a Potiguaçu, o novo líder potiguar, algo que ele estava muito interessado: educação.
Em troca da paz, Potiguaçu exigiu que os jesuítas ensinassem a ele tudo que eles sabiam. Aos 24 anos, ele aprendeu português - sabia ler e escrever - e aprendeu latim. O Frei Manuel Calado comenta que ele era um esmerado estudante, enfatizando a necessidade de uma gramática correta e uma perfeita pronúncia. Era tão crítico sobre si mesmo, “tão exagerado em suas coisas, que, quando fala com pessoas principais, o fazia por intérprete (posto que falava bem o português) dizendo que fazia isto porque, falando em português, podia cair em algum erro no pronunciar as palavras por ser índio". Além da educação mundana, Potiguaçu foi catequizado e em 1614, aos 34 anos, converteu-se ao cristianismo, junto a sua esposa Maíra, que batizaram-se, ele como Antônio e ela como Clara, e casaram-se na igreja de São Miguel do aldeamento Guajiru (atual município de Extremoz), seguindo o rito cristão. Antônio ainda teve a ideia de adotar o nome de Felipe, em homenagem ao rei de Espanha, que governava Portugal aquele período, devido a União Ibérica. Ali ele tornara-se Antônio Felipe Camarão (sendo o sobrenome por causa da tribo potiguar, “comedores de camarão”).
Como diz Igor Fagundes:
“Camarão é um exemplo clássico de um índio aldeado, sendo esta uma referência ao livro Metamorfoses indígenas, da autora Maria Regina Celestino de Almeida . Trata-se de um índio integrado à colonização, não se diluindo nas categorias genéricas de escravos ou despossuídos da Colônia. Este índio era súdito do rei e essa posição lhe possibilitava solicitar mercês”
Mercês são favores e honrarias que o rei pode conceder a seus súditos. Ele estava tão aculturado, era tão parte do mundo português, que conta o padre Manuel de Morais, em um depoimento dado ao Tribunal do Santo Ofício: “Em casa do Capitão mor dos índios (título que ele receberia), há quatro ou cinco peças de negros” . Isto demonstra que o índio estava tão integrado a colonização que havia até comprado alguns escravos negros para seu uso pessoal. Na crônica O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade, do frei Manuel Calado, também se comenta o quão devoto o potiguar era. Diogo Lopes Santiago, outro cronista comenta:
“Tornando ao Camarão e mais capitães, festejaram grandemente a vitória deram graças a deus, que foi o autor dela; principalmente este indião Camarão rendeu infinitas graças àquele poder divino, de que tudo depende, porque foi homem temente a Deus e bom cristão; e antes de entrar na batalha fez uma devota oração, tirando um relicário que sempre consigo trazia, o qual de uma parte tinha esmaltada a imagem de Cristo, e da outra a da Virgem Maria, Nossa Senhora, das quais ele era muito devoto, e depois de beijar estas santas imagens com muita devoção, fez uma prática a seus soldados com tão eficazes palavras, que mais pareciam de um cortesão político, do que um índio criado no sertão do Brasil”.
No mesmo ano de seu batismo, Jerônimo de Albuquerque Maranhão, que havia sido capitão-mor do Rio Grande (1603-1610), é convocado pelo rei espanhol para conquistar o Maranhão e convida Felipe para participar, junto a ele, desta aventura. Felipe levou 200 dos seus melhores guerreiros juntos consigo, que se somaram aos 300 portugueses. A batalha foi ferrenha, já que os franceses, que já ocupavam a ilha de São Luiz, tinham em seu exército 300 europeus e 2 mil índios, porém a tropa dos índios potiguares saiu vitoriosa, em 19 de novembro de 1614, na Batalha de Guaxenduba. A batalha foi decisiva para expulsão dos franceses da França Equatorial e consolidação da ocupação portuguesa na região norte do Brasil.
Ele retornou a aldeia velha de Igapó e permaneceu lá até a invasão holandesa em 1630, quando aos 50 anos, ele se voluntariou para lutar ao lado dos portugueses para expulsar os holandeses das terras brasileiras, na resistência comandada por Matias de Albuquerque Maranhão. Mas, que fique claro, nem todos os índios da aldeia de Igapó concordaram com o seu líder. Enquanto Felipe Camarão apoiou os portugueses, outros índios potiguares, liderados pelo seu primo, Pedro Camarão, lutaram ao lado dos holandeses.
Sua atuação na “Guerra de Pernambuco” é celebrada por vários cronistas, mas em especial Domingos Loreto Couto, no seu Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. Como explica Igor Fagundes, ele dedicou um capítulo inteiro ao índio, enfatizando sua bravura e sua fidelidade a coroa portuguesa. Diz ele:
“Seu nome como memorial de suas proezas, se ouvia entre os nossos com respeito, e entre os inimigos com espanto, e dilatou-o de sorte a fama, que chegou aos ouvidos do seu rey tão distante, quanto o apartavão os dilatados mares, que dividem a América da Europa. Sem petição de sua parte o despachou com Hábito de Cristo, título de Dom, e posto de Governador Geral de todos os índios da América, limitado para seus grandes merecimentos”..
Temos então o primeiro índio brasileiro a se tornar um cavaleiro português, portando a insígnia do Hábito de Cristo e com isso se tornando fidalgo, portando também o título de Dom, que foi estendido também a Clara, sua esposa, que passara a ser Dona, e também ganhava o cargo de governador de todos os índios da América portuguesa. Tudo isto por causa de sua participação em batalhas importantes como a Batalha de São Lourenço (1636), de Porto Calvo (1637) e de Mata Redonda (1638). Ainda participando, em 1638, da defesa da cidade de Salvador. Porém, sua maior contribuição a guerra, era com seus ataques de guerrilha as tropas inimigas, que atrapalhavam o avanço holandês e davam tempo para que os portugueses se reorganizassem e protegessem os colonos que pudessem ser pegos no meio da batalha.
Ele ainda participou, apesar de seus 68 anos, da maior rusga da guerra, a Batalha dos Guararapes, em Jaboatão dos Guararapes, 1648. Aqui o exército português enfrentou o batavo no monte Guararapes. Os holandeses tinha como objetivo reconquistar o Porto de Nazaré, no Cabo de Santo Agostinho, que abastecia o Arraial do Bom Jesus, sede da resistência, de armas e suprimentos. Porém, percebendo a movimentação inimiga, o exército rebelde se posicionou no meio do caminho dos holandeses, tendo três destacamentos, o português, no centro, em cima do monte; as tropas de negros de Henrique Dias à esquerda; e as tropas de Camarão à direita, entre o monte e o mangue. O plano era empurrar os soldados holandeses para o mangue, aonde suas botas, casacas e armas pesadas se tornariam obstáculos a sua movimentação que os índios potiguaras não teriam. Foi um massacre! Os índios afogaram os holandeses, ou rasgaram seus pescoços cobrindo a lama de sangue!
Na batalha, no entanto, Felipe Camarão foi ferido por uma lâmina holandesa e adoeceu. Ele morreu cinco meses depois, contam os documentos históricos, queimando em febre e com espasmos musculares o que indica que, provavelmente, tenha sido tétano a causa. Ele morreu no Arrraial Novo do Bom Jesus, em Pernambuco, em 24 de agosto de 1648, há 374 anos.
Para Saber Mais:
Igor Fagundes. Felipe Camarão, um cavaleiro potiguar a serviço Del-Rey.
Igor Fagundes. A história do índio Antônio Felipe (Poti) Camarão