Entendidos, Bichas, GLS e LGBT.
Prof. Dr. Lenin Campos Soares
Ironicamente, é durante a Ditadura militar que os homossexuais potiguares começam a construir seus primeiros espaços de socialização. O que é isso? Lugares em que os homens gays e mulheres lésbicas poderiam viver suas sexualidade sem medo de discriminação e protegidos contra o preconceito. Muito antes dos conceitos de GLS e mais tarde de “Gay Friendly”. Em Natal, essa história remonta a bares como o Top Top, na av. Rio Branco; e O Saci, que funcionava perto da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos; além do Bar do Neto, na Av. Alexandrino de Alencar. Explica Antônio Dantas que estes espaços eram frequentados pelos “entendidos”. Este conceito faz parte da história homossexual na cidade. Ele é usado pelas classes mais altas da cidade e apresentado não como excludente, ao contrário do gay ou lésbica, ele cria uma espécie de camuflagem para os atos homoeróticos. No artigo de de Danieli Bezerra, Tu é entendida, né, doidinha?, por exemplo, uma de suas entrevistadas diz que preferia ser entendida do que lésbica, porque nesse caso as pessoas não olhavam diferente para ela.
Contudo, Antônio Dantas considera que a inauguração do Bar Arapuca, em 1965, é o marco que deve determinar o início da construção de espaços para a sociabilização homossexual no estado do Rio Grande do Norte. Instalado no Alecrim, por trás do Mercado Público do bairro, na rua Severino Alves Bila, ele era frequentado pela elite da cidade. Os artistas e intelectuais da cidade encontravam-se no bar para tomar cervejas geladas e beber coquetéis de cachaça com frutas. O Arapuca foi um sucesso instantâneo e chamou atenção demais! Logo um imenso escândalo, envolvendo um dos filhos das elites da cidade, que fez o garoto ser deportado da cidade, fez com que o bar fosse fechado.
A população homossexual da cidade, contudo, não ficou desguarnecida. No Passo da Pátria, escondido entre palafitas dos olhos da “boa e tradicional sociedade potiguar”, dois bares, vizinhos um do outro, se mantiveram abertos. O primeiro chamava-se Brizza Del Mare; e o segundo, Pé de Mocó. O primeiro era frequentado pela elite “entendida” da cidade; o segundo, servia as “bichas” pobres. A separação era nítida, com os bens nascidos de um lado, e travestis e homens pobres do outro. Contudo, conta-se que quando a noite avançava, a circulação entre um e o outro aumentava.
Na década de 1980, explica Antônio Soares Neto que inaugura-se a Vivace em Natal. Esta transforma a noite natalense, dirigida por um grupo pernambucano, ela apresentou ao publico potiguar os primeiros shows de transformistas, com dublagem de músicas internacionais, shows de dança e de comédia; surgem também as primeiras boates como Equus (fundada em 1980, depois chamada Broadway), a Aquarius e a Vice-versa; e os primeiros bares destinados apenas ao público homossexual feminino, como A Toca do Rei, o Bar de Veca, o Bar da Zuly e O Péron.
A Equus funcionava na Rua Felipe Camarão, 609, fundada por Marcos Sá de Paula e Ângelo Burrão. Em 1982 ocorreu o primeiro concurso de Mr. Gay do Rio Grande do Norte, isso trouxe para a boate um público de pelo menos três mil pessoas. A 1h da manhã foi necessário fechar o local por que toda a bebida havia sido consumida, porém a festa continuou na rua. No dia seguinte, a Tribuna do Norte estampava a manchete: Orgia Gay na Rua Felipe Camarão!. Na matéria contava-se no uso de drogas, inclusive injetáveis, além da destruição causada pelos “viados”. Tudo falso! As fotografias inclusive que ilustravam a matéria eram montagens. Tudo com objetivo de fechar a boate, que nas semanas seguintes abriu suas portas para nenhum cliente. Lula Belmont, que estava gerenciando a boate, não se deu por vencido e organizou um baile de máscaras, trazendo o DJ Junior Natal, um dos primeiros da cidade. A novidade de um disque-jóquei lotou a boate novamente.
O Vive-versa abriu, sob gerência de Lula Belmont, em 1984, na Rua Vigário Bartolomeu e funcionava de terça a sábado, sem hora para fechar. Diz Sérgio Vilar:
“O clima no Vice-Versa – nome sugerido por Marcos Sá – era todo cultural. Além da decoração havia espaço para galeria de arte e até para apresentações de teatro de bolso, aberto às segundas-feiras para 60 pessoas. Foi nele que estreou o espetáculo marcante de Véscio Lisboa, O Anjo Maldito, em cartaz por seis meses.
A criatividade dava o tom do Vice-Versa. Na época da efervescência política com a retomada do estado democrático e a nova república (com letra minúscula, mesmo), o cardápio tinha nome de políticos. Depois migrou para artistas locais. E com essas simples ideias conquistava a simpatia do público e do artista”.
A boate mesmo abria apenas depois da meia noite, ela ficava nos fundos do prédio. Em 1992 ela fechou, sobretudo por causa da decadência do Centro. Na década de 1990, no entanto, foi o ano das boates GLS (dos Gays, Lésbicas e Simpatizantes): a Vogue, que começou funcionando no Alecrim, no número 385, da Av. Presidente Bandeira; o Avesso Clubber, que funcionava na Av. Rio Água Vermelha, em Parnamirim; e o Feitiço da Ribeira, que começou na Rua Chile e migrou para Rua Prof. Antônio Henrique de Melo, em Capim Macio. Os públicos aqui eram bem segmentados: a Vogue abria suas portas para as bichas, sendo discriminada inclusive pelo público gay que considerava seu público perigoso, feio, mal educado ou, simplesmente, despudorado; o Avesso concentrava um público de melhor poder aquisitivo, jovens profissionais e estudantes universitários; o Feitiço dedicava-se ao público feminino, apresentando músicas e serviços bem distintos dos outros locais, com artistas se apresentando ao vivo e bar servindo petiscos.
Os anos 2000 renovaram esse quadro com a abertura de lugares como o Crystal Club, na Ribeira; o Adaggio, em Cidade Verde. A competição tornou-se ferrenha pelo público e essa década terminou apenas com a Vogue de pé. Porém, revigorada, mudando-se para um prédio novo, mais amplo, agora na Rua José Aguinaldo de Barros, em Neópolis; abrindo seu próprio bar, o Donana. Novos lugares, no entanto, surgiram, porém agora sem levantar a bandeira de lugares gays, eles se dizem apenas “friendly”, isto é, amigáveis ao público LGBT: o Casa Nova Ecobar e o Galpão 29 são dois espaços que abriram desde 2010 e tem evitado levantar a bandeira LGBT tão alto quanto outros os fizeram. Este seria um caminho sem volta? Bares como o La Luna, também em Neópolis, na Av. Salgado Filho; e o Ateliê, na Rua Chile na Ribeira; mantém a bandeira do arco-íris erguida, contudo, mesmo assim, eles são cada vez mais frequentados por público não somente LGBT. Qual das duas opções vai vingar somente o tempo pode dizer.
Para saber mais:
Antônio Ferreira dos Santos Neto. Os homossexuais e a AIDS (1980-1990)
Carlos Augusto Reinke e outros. Homossexualidade Masculina e suas marcas históricas.
Danieli Machado Bezerra. Tu é entendida, né, doidinha?
Jailza Teixeira da Silva. Preconceitos contra gays no mercado de trabalho.
Lenin Campos Soares. Homohistória.
Rylanneive Leonardo Pontes Teixeira. Vivências de homossexuais nos espaços urbanos.