História da Arte Potiguar: A Pintura Holandesa
Por Jeanne Monte e
Prof. Dr. Lenin Campos Soares
Os holandeses chegaram à América durante o século XVII, motivados a tomar posse das terras que também estavam em processo de colonização, disputada por portugueses e franceses. O intuito era tomar a sede do governo português na Bahia, contudo acabaram se fixando na capitania de Pernambuco ao perceberem o núcleo de riqueza trazida pelo açúcar na região.
O empreendimento colonizador da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais trouxe ao Brasil holandeses que rapidamente partiram para Pernambuco sob o comando de Hendrick Lonck, conquistando as demais capitanias (Paraíba, Rio Grande, Ceará, Maranhão e Sergipe), localizadas no nordeste do Brasil por um período de aproximadamente 24 anos, entre os anos de 1630 a 1654. A colônia holandesa no Brasil (também chamada de Nova Holanda), alcançou seu apogeu durante o governo de João Mauricio de Nassau, que acarretou a seus colonos uma maior liberdade religiosa, cultural e econômica.
Ao chegar na América, o colonizador holandês se depara com um mundo ruralizado, feudal até, o que faz o Príncipe de Nassau tentar trazer uma “modernização” durante o período que aqui estiveram. Construíram ruas, pontes e estradas, especialmente em Pernambuco, permitiram também uma vertente calvinista na religião, estimulando o surgimento de igrejas reformadas (que foram destruídas com a retomada do poder português). O conde, que era um apreciador das artes plásticas e erudição, trouxe consigo além de sua tropa militar, dois grandes artistas que retrataram, através de pinturas, a vida no Brasil seiscentista: Frans Post e Albert Eckhout.
Francisco Oliveira afirma que a presença destes pintores era parte do projeto político neerlandês. Diz ele que “descrever os espaços por meio de imagens fazia parte de práticas integradas à própria estabilização da presença colonial no continente americano” (Oliveira, 2013). Permitia que poder político holandês sobre a terra fosse menos contestado pelos outros estados europeus. As imagens produzidas por holandeses como Frans Post e Albert Eckhout contribuíram para construir entre os europeus que não vieram para América uma imagem de como era o Brasil, o Novo Mundo e o homem americano, esta talvez seja a maior herança da ocupação holandesa.
Frans Post e Albert Eckhout retrataram as paisagens americanas como também o cotidiano do povo, permitindo ao observador-colonizador ver a vida no Novo Mundo protegidos em seus palácios. Porém essas pinturas não devem ser consideradas como cópias fieis da realidades brasileira, pois, seus artistas, homens europeus, estão influenciados pela pintura renascentista. Isto aparece, por exemplo, em como a figura humana é centralizada, aparecendo em primeiro plano, enquanto os demais itens são colocados em segundo plano. Uma outra característica aparece especificamente nas pinturas de Eckhout, este se dedicou aos habitantes da terra, e ele se foca nos mestiços brasileiros, seus quadros constroem uma síntese daquelas figuras, o que remete a uma cultura de miscigenação, como na análise feita por Ana Maria Belluzzo em O Brasil dos Viajantes:
“Por exemplo, os adornos da Mulher Negra (chapéu decorado com penas de pavão, brincos e gargantilha com pingente de pérolas, colar de coral vermelho, pulseira de ouro ou latão e um bracelete de miçangas) nos alertam para o caráter idealizado e retórico da figura enfocada. O cesto em sua mão direita é originário de Angola ou da República Democrática do Congo, associando a mulher ao ponto de origem da maioria dos escravos negros dos holandeses no Brasil. Talvez por isso essa mulher assemelhe-se tão pouco a imagem real de uma escrava da época. Do mesmo modo, os porquinhos-da-índia aos pés da Mulher Mameluca e o cão selvagem entre as pernas da Mulher Tapuia devem ser entendidos como sinais exteriores do índice de civilidade de cada personagem. Nesse sentido, deve-se sempre ter em mente que esses retratos de certa forma fixam mais a perspectiva da dominação holandesa no Brasil do que o próprio Brasil”.
Albert Eckhout
Como já falamos de Franz Post aqui, nos focaremos neste texto em Albert Eckhout. No Brasil, ele ficou conhecido como o autor de pinturas que retratavam os chamados tipos brasileiros: indígenas, mestiços e negros. Ele foi trazido ao Brasil pelo conde Maurício de Nassau, com a proposta de retratar o Novo Mundo para os europeusl. Eckhout chegou ao Brasil com 26 anos e permaneceu por sete anos (1637-1644). No período em que esteve na Nova Holanda desenvolveu intensa atividade como documentarista da fauna e da flora, compondo telas com naturezas mortas em que mostrava animais e frutas, mas é especialmente com seus tipos humanos que ele mais se destacou. Continuou seu trabalho após sua volta à Holanda, ainda patrocinado por Nassau, e teve grande sucesso.
Suas obras fizeram sucesso e eram compradas por volumosas somas, sendo o quadro A dança dos Tapuias sua obra-prima. Suas pinturas foram dadas de presente por Nassau ao rei Luís XIV de França que, mais tarde, foram levados para a manufatura de tapeçarias dos Gobelins, que os reproduziu na série peças denominados de Les Anciennes Indes, que se tornaram muito populares no século seguinte. Outros trabalhos, que atualmente pertencem ao Museu Nacional de Arte da Dinamarca, foram presentes de Maurício de Nassau a seu primo Frederico III da Dinamarca. Dom Pedro II, imperador do Brasil, encomendou cópias em escala menor dos quadros que hoje encontram-se no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro. A maneira como os quadros foram utilizados como moeda de troca servem para observarmos o quanto eram importantes e valiosos.
Albert Eckhout realizou um total de 24 pinturas, sem contar com os desenhos da fauna e flora que apresentava com tantos detalhes, que servem como documentos para pesquisas zoobotânicas. No entanto, os que mais se destacaram foram os famosos quatro tipos de pares brasileiros, feitos em tamanho real. Estas figuras brasileiras são especialmente importantes para a História do Rio Grande do Norte, porque os indígenas que aparecem nas imagens são os índios que viviam na capitania: o tarairiú e os potiguares são os indígenas retratados por Eckhout. Diz Yobenj Chicangana-Bayona (2008):
“Os tipos físicos nas pinturas de Eckhout não estão idealizados, podendo se comprovar nos desenhos preliminares e nas pinturas. Freqüentemente a passagem de um desenho para uma pintura gera mudanças, no caso, o biótipo presente nos desenhos, feitos do natural, permanecem nas pinturas. Assim, nas pinturas Eckhout se mantém fiel ao seu registro nos desenhos, sem mudar poses, proporções ou fisionomia. As pinturas de índios de Eckhout ficam longe da representação clássica a partir de cânones renascentistas usada com frequência para a representação de índios até o século XVIII, tais como corpos escultóricos e cocares de penas”.
Na tela, o Homem Tapuia aparece um homem nu com um amarrilho peniano, o rosto perfurado (bochechas e queixo com piercings feitos com osso) e com uma coifa de plumas. Em suas costas leva amarrado um adorno circular de penas de ema e nas mãos leva diversos tipos de armas. Na mão direita leva um propulsor e dardos e na mão esquerda uma borduna, que enfatizam a referência ao guerreiro. A paisagem não apresenta qualquer vestígio de colonização, referenciando como ele é selvagem. É agreste e os animais que o acompanham são peçonhentos: uma aranha caranguejeira, uma taturana e uma jibóia com a cabeça ensangüentada, provavelmente morta com a borduna/tacape. As plantas que acompanham são, na sua maioria, silvestres e típicas da terra, como a carnaúba cortada ao meio atrás do homem e o salsão aos seus pés. No plano de fundo aparecem grupos de índios em círculos, similares à outra pintura feita por Eckhout, a Dança dos Tapuias.
Na tela Mulher Tapuia, somos apresentados a uma indígena nua, que tem seus órgãos sexuais cobertos por um tufo de folhas. Ela usa uma faixa para segurar com uma faixa um cesto de fibras vegetais, que leva em seu interior uma cuia, feita com o fruto do cabaceiro, e uma perna humana decepada, que, pelo tamanho, parece ser de um adulto. No seu braço esquerdo, leva alguns ramos de folhas, e ainda se pode apreciar uma pulseira de sementes. Da mesma forma que o homem Tapuia, calça sandálias de fibras vegetais. Na mão direita empunha uma mão cortada. A tapuia está acompanhada por um cachorro selvagem. A vegetação também é selvagem, uma árvore de canafístula, que expõe suas enormes vagens, se coloca atrás da mulher, a sua direita um anhingá em flor, subindo pela árvore um maracujazeiro floresce. Ao fundo, um grupo de nativos faz uma dança de guerra.
Na tela o Homem Tupi aparece um homem vestido com um calção de pano europeu, peito descoberto, portando uma faca europeia no cinto. Enquanto sua mão esquerda segura arcos e flechas, símbolos do guerreiro, na mão direita empunha uma flecha longa com a ponta virada em direção do chão. Aos seus pés, no canto direito, aparece uma mandioca cortada ao meio, provavelmente com a faca que o Tupi tem no cinto. O tema da mandioca se repete porque ela reaparece ao fundo com o galhos cortados, como se prontas para a colheita. Eckhout descreve aqui todos os estágios de cultivo da mandioca. Aparecem também, pousado na folha da mandioca, um beija-flor, enquanto no canto esquerdo da tela um guaiamu é representado. Em segundo plano, os índios tomam banho no rio e lavam suas roupas, mas ao fundo vemos uma canoa e um pequeno barco a vela.
Na tela Mulher Tupi somos apresentados a uma mulher índia de tranças, que envolvem tecido junto com o cabelo, saia branca, seios descobertos, conduzindo no colo seu filho nu, com uma fita na cabeça. Na mão direita leva uma cabaça para água. Já sobre sua cabeça, equilibrado com a mão esquerda, leva um cesto de palha com uma rede, uma outra cabaça e uma esteira enrolada e amarrada. O fundo em que a tupi está inserida constitui-se de uma paisagem colonial, domesticada, indicando o status da nativa. Ao lado dela aparece uma bananeira, planta introduzida pelos portugueses, na América; no segundo plano observamos pessoas trabalhando em uma plantação com uma casa grande ao fundo, mas aos seus pés um sapo cururu, nativo do nordeste do Brasil . .
Já na tela Mulher Mameluca encontramos uma mulher vestida com um tecido branco, usando um colar, brincos e pulseiras e uma tiara de flores, carrega também um cesto de flores, e se coloca a frente de uma helicônia e um cajueiro, além de urtigas-brancas. A sua frente temos uma mamona com seus frutos. Aos pés da figura, temos dois préas (que são costumeiramente confundidos com porquinhos-da-índia). Note este elemento interessante: para demonstrar o quanto ela é mestiça, apesar dela estar vestida e usar joias ao estilo europeu, denotando sua ascendência branca, ela não está inserida numa paisagem domesticada como os indígenas tupis. Ela está inserida numa paisagem selvagem, sem plantas e animais trazidos pelos europeus.
Na tela A Dança Tapuia encontramos oito homens dançando em círculo, nus, usando apenas seus amarrilhos penianos, eles carregam tacapes decorados com penas de arara na mão esquerda, e arcos e setas na mão direita. Alguns usam cocares, outros trazem penas brancas nas orelhas e outros tem o rosto perfurado com piercings. Alguns tem os cabelos curtos e, pelo menos três, usam o cabelo longo até as costas. Duas mulheres observam a dança, nuas, com seus órgãos sexuais cobertos por ramos de folhas. Elas estão tapando suas boca enquanto observam a dança. A paisagem é selvagem, dominada por palmeiras e cajueiros. Um elemento interessante é que um dos nativos dançantes encara diretamente o observador.
Para saber mais:
Francisco Isaac de Oliveira. O fio da memória: as paisagens do Brasil holandês.
Izabel Maria dos Santos. Albert Eckhout e o novo mundo: transformação e manutenção de imaginários?